segunda-feira, 30 de junho de 2008

Uma Casa na Escuridão


"Eu não queria existir. Eu não queria que o meu rosto fizesse parte das coisas que podem ver-se. Eu queria que os espelhos não me reflectissem, que ninguém me ouvisse, que ninguém soubesse da minha voz ou se lembrasse do meu nome, do meu rosto, das minhas memórias. Eu queria não ser sequer algo que se esquece."


Uma Casa na Escuridão - José Luís Peixoto, pág. 174.

domingo, 29 de junho de 2008

Um instante e toda a vida (não devemos lamentar-nos)

"E como cada passo que pomos à frente de outro é o que afinal nos vai caindo em sorte, não devemos lamentar-nos, porque é com esses passos que se cumprem as nossas vidas, mesmo que não sejamos mais que uma poeira no infinito e por esse caminhar sem fim não cheguemos a compreensão nenhuma."


Um instante e toda a vida - João Boavida, pág. 89.

sábado, 28 de junho de 2008

O Gato Preto

"Queima-me a vergonha e todo eu estremeço ao escrever esta abominável atrocidade.
Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se dissiparam os vapores da minha noite de embriaguez, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que tinha cometido. Mas era um sentimento frágil e equívoco e o meu espírito continuava insensível. Voltei a mergulhar nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do acto. (...)"

O Gato Preto - Edgar Allan Poe, pág. 6, 7.

Um instante e toda a vida

"Felizes os que a morte encontra carregando um bom saco de anos e sem o contrapeso de maus sentimentos. Talvez, diz Zephyr, encolhendo os ombros, mas carregada ou não sempre a vida será curta para os desejos por realizar. E para aqueles que, sendo novos, com a vida toda pela frente, não sabem o que fazer com ela? Ou para os maus e perversos que a não merecem? pergunta Zodyac. Mesmo para esses, responde Zephyr, porque não é o desejo da vida que lhes foge, mas a loucura na mente ou o veneno na alma que os torna espessos e infelizes. E será legítimo esperar mais quem ao fim da vida já chegou? pergunta Zodyac. Ah, ainda não entendeste, responde Zephyr, pois que interessa se é legítimo ou não? E porque deverá chegar a vida ao fim, pergunta Zephyr ainda, se, por muito vivida que tenha sido, haveria sempre mais para viver? Tudo tem que chegar a um fim, responde Zodyac. Diz antes, emenda o amigo, estamos habituados a que assim seja. As coisas estão feitas, é certo, mas porque não pensar de outro modo? Ouve, pergunta Zodyac, será legítimo esperar pelo que já se alcançou? Não, porque já se alcançou, responde Zephyr. O que já se alcançou, alcançado está. Ora, pois, responde Zodyac, se já se alcançou, encontrou seu fim, as coisas nascem e morrem. E, responde tu, diz Zephyr, pensarmos que tudo o que já se alcançou era o que havia para alcançar, será também legítimo? Não, responde Zodyac, o desejo segue sempre muito à frente das nossas possibilidades. E, insiste ainda Zephyr, consolar-se alguém com o passado que viveu quando devia ter o futuro à sua frente, é também legítimo? Não, responde Zodyac, e daí? É certo que são coisas diferentes, continua pouco depois aproveitando o silêncio agora do amigo, mas vão dar no mesmo, porque o que já viveu está vivido. E mesmo que o contrário diga, põe toda a força do seu desejo no que está para viver. Assim é, de facto, concorda confuso Zodyac. Mas Zephyr insiste: Acaso correrá o caçador atrás da peça que já carrega aos ombros? Não, responde Zodyac. Mas, se vir outra, não largará aquela, por um instante, para tentar apanhar a que ainda foge? Assim é, concorda de novo Zodyac, mesmo arriscando-se a ficar sem nenhuma por obra de algum astuto que por detrás dele venha e se aproveite de tanta ganância, sorri-se o jovem com malandrice. Seja como for, diz Zephyr, qualquer um correrá atrás do animal que foge com esperança de o alcançar, sem dúvida pensando voltar atrás assim que puder, para retomar a que já caçou. É certo, responde Zodyac, sendo ágil caçador alcançará com flecha certeira o gamo que foge. E se tiver sorte encontrará ainda a peça escondida e ficará com as duas. Vês o que quero dizer? Que tem a vida vivida com a vida a viver, se uma está para trás e a outra para a frente?"


Um instante e toda a vida - João Boavida, pág. 126, 127.