sábado, 28 de junho de 2008

Um instante e toda a vida

"Felizes os que a morte encontra carregando um bom saco de anos e sem o contrapeso de maus sentimentos. Talvez, diz Zephyr, encolhendo os ombros, mas carregada ou não sempre a vida será curta para os desejos por realizar. E para aqueles que, sendo novos, com a vida toda pela frente, não sabem o que fazer com ela? Ou para os maus e perversos que a não merecem? pergunta Zodyac. Mesmo para esses, responde Zephyr, porque não é o desejo da vida que lhes foge, mas a loucura na mente ou o veneno na alma que os torna espessos e infelizes. E será legítimo esperar mais quem ao fim da vida já chegou? pergunta Zodyac. Ah, ainda não entendeste, responde Zephyr, pois que interessa se é legítimo ou não? E porque deverá chegar a vida ao fim, pergunta Zephyr ainda, se, por muito vivida que tenha sido, haveria sempre mais para viver? Tudo tem que chegar a um fim, responde Zodyac. Diz antes, emenda o amigo, estamos habituados a que assim seja. As coisas estão feitas, é certo, mas porque não pensar de outro modo? Ouve, pergunta Zodyac, será legítimo esperar pelo que já se alcançou? Não, porque já se alcançou, responde Zephyr. O que já se alcançou, alcançado está. Ora, pois, responde Zodyac, se já se alcançou, encontrou seu fim, as coisas nascem e morrem. E, responde tu, diz Zephyr, pensarmos que tudo o que já se alcançou era o que havia para alcançar, será também legítimo? Não, responde Zodyac, o desejo segue sempre muito à frente das nossas possibilidades. E, insiste ainda Zephyr, consolar-se alguém com o passado que viveu quando devia ter o futuro à sua frente, é também legítimo? Não, responde Zodyac, e daí? É certo que são coisas diferentes, continua pouco depois aproveitando o silêncio agora do amigo, mas vão dar no mesmo, porque o que já viveu está vivido. E mesmo que o contrário diga, põe toda a força do seu desejo no que está para viver. Assim é, de facto, concorda confuso Zodyac. Mas Zephyr insiste: Acaso correrá o caçador atrás da peça que já carrega aos ombros? Não, responde Zodyac. Mas, se vir outra, não largará aquela, por um instante, para tentar apanhar a que ainda foge? Assim é, concorda de novo Zodyac, mesmo arriscando-se a ficar sem nenhuma por obra de algum astuto que por detrás dele venha e se aproveite de tanta ganância, sorri-se o jovem com malandrice. Seja como for, diz Zephyr, qualquer um correrá atrás do animal que foge com esperança de o alcançar, sem dúvida pensando voltar atrás assim que puder, para retomar a que já caçou. É certo, responde Zodyac, sendo ágil caçador alcançará com flecha certeira o gamo que foge. E se tiver sorte encontrará ainda a peça escondida e ficará com as duas. Vês o que quero dizer? Que tem a vida vivida com a vida a viver, se uma está para trás e a outra para a frente?"


Um instante e toda a vida - João Boavida, pág. 126, 127.

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