terça-feira, 29 de julho de 2008

No Céu da Noite


No céu da noite que começa
Nuvens de um vago negro brando

Numa ramagem pouco espessa

Vão no ocidente tresmalhando.


Aos sonhos que não sei me entrego

Sem nada procurar sentir

E estou em mim como em sossego,

P'ra sono falta-me dormir.


Deixei atrás nas horas ralas

Caídas uma outra ilusão,

Não volto atrás a procurá-las,
Já estão formigas onde estão.


Fernando Pessoa

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Este poema é dedicado ao João, pois tirei este poema de um livro que ele me ofereceu (Poesia da Noite). :)

sábado, 26 de julho de 2008


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Mário Cesariny

terça-feira, 22 de julho de 2008


Hino a Lúcifer

Sem atentar, nem ao bem nem ao enfermo, que finalidade tem o acto?
Sem o seu clímax, morte, que salvação tem
A Vida? uma maquina implacável, exacta
Enquanto passeia por um caminho vazio e insignificante
Para afundar em brutos apetites, o seu conteúdo inteiro
Quão aborrecido estava ele de se compreender
A si mesmo! Mais, este nosso nobre elemento
Do fogo na natureza, amor no espírito, desconhecida
A vida é sem primavera, sem eixo, e sem fim.

O seu corpo um rubi radiante de sangue
Com nobre paixão, Lúcifer de alma ensolarada
Deslizou pela colossal manhã, ágil e oblíquo
No imbecil perímetro do Éden.
Ele abençoou o não-ser com todas a maldições
E espicaçou com mágoa a alma apagada de sentido,
Soprou a vida para o estéril universo,
Com Amor e Conhecimento expulsou a inocência
A Chave da Alegria é a desobediência.



Texto original de Aleister Crowley, traduzido da lingua inglesa por mim.
Acredito que esta é a primeira versão em português do afamado poema "Hymn to Lucifer"

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Chorar


"(...) há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e ainda chorar com riso. Chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suprema e excessiva. (...) A dor moderada solta as lágrimas, a grande dor as enxuga e as seca. Dor que pode sair pelos olhos, não é grande dor; por isso não chorava Demócrito. E como era pequena demonstração da sua dor não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.
Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofia e da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva faz cegar. A dor, quando não é excessiva, rompe em vozes; a excessiva, emudece.
(...)
Na guerra morrem muitos soldados rindo e a razão é, diz Aristóteles, porque são feridos no diafragma. Não se ria Demócrito, como contente, ria como ferido; recebia dentro do peito todos os golpes do mundo e de tão maltratado ria."


Padre António Vieira

sábado, 19 de julho de 2008

Cemitério de Pianos


"O toque das minhas mãos não tinha peso e não tinha textura, as pessoas que falavam para mim estavam sempre muito longe, todas as cores eram pálidas aos meus olhos, os copos de vinho que eu bebia não sabiam a nada e embebedavam outra pessoa, o meu corpo a caminhar no passeio era tão leve que não me pertencia, porque eu apenas pensava nela. Eu apenas conseguia pensar os pensamentos que lhe imaginava. Eu apenas existia no fundo de mim a pensar nela. Um movimento mínimo no meu interior: acreditar durante um instante que ela podia ter-se rido da carta que lhe entreguei: qualquer movimento no meu interior era sentido com a minha vida inteira; mas o toque das minhas próprias mãos era impreciso. No mundo, eu não era eu. Era um reflexo que alguém lembrava vagamente. Eu era um reflexo que alguém sonhava sem acreditar."


José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, pág. 72.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O Nascimento da Tragédia


"Também na Idade Média alemã se revolviam, sob o mesmo poder Dionisíaco, multidões sempre crescentes, cantando e dançando, de um lugar para o outro: nesses dançarinos de São João e São Vito, reconhecemos os coros báquicos dos Gregos, com o seu precedente histórico na Ásia Menor até à Babilónia e aos orgiásticos saqueus. Há pessoas que, por falta de experiência ou por estupidez, se desviam de tais fenómenos como de "doenças populares", com uma atitude de escárnio ou de lamentação e no sentimento da própria saúde: os pobres não imaginam decerto quão cadavérica e fantasmagórica se apresenta justamente essa sua "saúde", quando a vida fulgurante de entusiastas dionisíacos passa torrencialmente ao lado."

Nietzsche, O Nascimento da Tragédia

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Porque o melhor, enfim...

Ora, hoje temos um poema :)

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Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!

- Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. -

Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
A poda, a cava e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva

Que Abril Copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...

Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,

Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...

Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam-se as maxilas...

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.


Camilo Pessanha

domingo, 13 de julho de 2008

Realidade Virtual


«Tudo o que eu sou é um cérebro a flutuar numa cuba de produtos químicos. Um cientista ligou de tal forma fios ao meu cérebro que tenho a ilusão da experiência sensorial. O cientista criou uma espécie de máquina de experiências. Do meu ponto de vista, posso levantar-me e dirigir-me à loja para comprar um jornal. Contudo quando faço isto o que está realmente a acontecer é que o cientista está a estimular certos nervos do meu cérebro, de maneira que eu tenha a ilusão de fazer isto. Toda a experiência que penso provir dos meus cinco sentidos é, na verdade, o resultado de este cientista perverso estar a estimular o meu cérebro desencarnado. Com esta máquina de experiências, o cientista pode fazer com que eu tenha qualquer experiência sensorial que poderia ter na vida real. Através de um estímulo complexo dos nervos do meu cérebro, o cientista pode dar-me a ilusão de estar a ver televisão, a correr uma maratona, a escrever um livro, a comer massa ou qualquer outra coisa que eu possa fazer. A situação não é tão rebuscada como pode parecer: os cientistas estão já a fazer experiências com simulações feitas em computador, conhecidas como máquinas de 'realidade virtual'.»


Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia, Gradiva, p. 146.

sábado, 12 de julho de 2008

Nenhum Olhar (talvez)


"Talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem."


José Luís Peixoto - Nenhum Olhar, pág. 44

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Non Sum Dignus


"- Você está melhor. Não diga que não!
Não percebem que quando me não dói o corpo me dói a alma."


Miguel Torga - Diário V - Non Sum Dignus

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Photomaton & Vox


"Mas de tudo isso descobri eu os maneirismos e a figura romântica. Éramos uma nova imitação de Cristo na luciferina versão de alguns radicais, antigos e modernos, para quem a poesia foi uma acção terrorista, uma técnica de operar pelo medo e o sangue. Ingenuidade tão monstruosa como a da mitologia solar que transporta para os mercados as pombas da paz, a terceira pessoa do pacto social - isso: o que a lei espera do amansamento das disposições dramáticas.
É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossivel fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo - aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nublosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto ás imobilidades, aos silêncios, aos sonos."


Extraído do livro Photomaton & Vox, escrito por Herberto Helder.

Boris Vian

“- Qual é o principio da tua invenção? – perguntou Chick.
- A cada nota faço corresponder um álcool, um licor ou uma substância aromática – disse Colin. – O pedal-forte corresponde ao ovo batido e o pedal-surdina ao gelo. Para a água-de-seltz é preciso um trilo no registo agudo. As quantidades estão na razão directa das durações: a semifusa equivale à décima sexta parte da unidade, a semínima à unidade, a semibreve ao quádruplo da unidade. Quando se toca uma ária lenta começa a funcionar um sistema de registo, por forma a aumentar a percentagem de álcool em vez da dose – o que daria um cocktail demasiado abundante. E querendo, através de um regulador lateral pode fazer-se variar o valor da unidade, consoante a duração da ária, reduzindo-a por exemplo à centésima parte, a fim de podermos obter a bebida que entre em linha de conta com todas as harmonias.
- É complicado – disse Chick.
-O conjunto é comandado por contactos eléctricos e potenciómetros. Não dou pormenores, tu sabes como é. Aliás acontece que o piano, ainda por cima funciona.
-É maravilhoso! – disse Chick.
-Só há uma coisa aborrecida – disse Colin -, é o pedal-forte do ovo batido. Tive que instalar um sistema de coordenação especial porque, mal se toca um trecho demasiado hot, caem pedaços de omeleta no cocktail e torna-se insuportável tragá-lo Terei que modificar isso. Por enquanto basta ter cuidado. Ao sol grave corresponde o creme de natas.
-Vou fazer um com o loveless love - disse Chick. – Vai ser terrível."



Boris Vian, in A ESPUMA DOS DIAS, pag 21-22.

Jorge Luís Borges

“O macaco da tinta

«Este animal abunda nas regiões do Norte e tem quatro ou cinco polegadas de comprimento; está dotado de um instinto curioso; os olhos são como cornalinas e o pêlo é negro-azeviche, sedoso e flexível, suave como uma almofada. É muito afeiçoado á tinta-da-china e quando as pessoas escrevem, senta-se com uma mão sobre a outra e as pernas cruzadas, á espera que acabem e bebe e tinta que sobra. Depois volta a sentar-se de cócoras, e fica tranquilo.»

Wang-Ta-Hai (1791).”
Jorge Luís Borges in O Livro dos Seres Imaginários

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Palomar


"Que alívio sentiria se pudesse anular o seu eu parcial e cheio de dúvidas na certeza de um princípio do qual tudo derivasse! Um principio único e absoluto, onde actos e formas encontrassem a sua origem?"
Italo Calvino, in Palomar.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Manhã Submersa


"Jorra-me o suor pelo cabelo empastado e uma multidão de demónios criva-me de alaridos."


Manhã Submersa - Vergílio Ferreira

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Este, não sendo um escrito de conteúdo literário relevante, é um grito de inconformismo e uma busca pela sanidade. Essa busca, dir-se-ia impossível neste mundo onde se acendem charutos com notas, enquanto morrem milhares, sem força para afastar as moscas da boca. A literatura é, antes de mais, uma busca para a sanidade.
Mia Couto pode não ser são (como ninguém o é), mas tem a tentativa honesta de sê-lo. Esta busca que aqui se faz, transcende a politica e deixa bem aceso o desespero que é existir, num mundo aturdido pelo zapping frenético de informação irrelevante. E citando outro moçambicano:


“Pastoral
Seus novíssimos guardadores de rebanhos, vocês, a mim, não me tangem.
Eu nunca me esquecerei dos pastores que vi na infância, a quem o crepúsculo punha no contorno uma linha de sombra e, tantas vezes surdos-mudos, guardavam no vislumbre de cada olhar a ovelha que reconduziam à pedrada e amavam. Vocês, a mim, não.
Não obstante a tua atenção começar a desprender-se das sobras destes filhos da puta, não te esqueças de que elas, ainda compactas, estão em marcha.
Se caíres entre os cães, lambe-te e ajuda-te a morrer, meu doce lobo.
Isto parece um poema? Ainda não é. Poderia dar-lhe outro timbre. Mas a poesia e eu estamos de costas voltadas, só quando nos entreolhamos, algumas palavras fluem.”
Sebastião Alba, in Albas

Também volto costas á arte. Não como protesto, mas para salvaguardar a minha sanidade, que certamente estaria em causa, se na sociedade desempenhasse um papel que não fosse o de marginal às minhas possibilidades. Também eu sou homemdacal, lobo, por isso não começo por mestres (embora o Dinis o seja), mas por sentimentos indignados.



Mia Couto
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:::CARTA AO PRESIDENTE BUSH:::
Senhor Presidente:
Sou um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve na vossa lista negra. Milhões de moçambicanos desconheciam que mal vos tínhamos feito. Éramos pequenos e pobres: que ameaça poderíamos constituir? A nossa arma de destruição massiva estava, afinal, virada contra nós: era a fome e a miséria.
Alguns de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do apartheid - violava de forma flagrante os direitos humanos. Durante décadas fomos vítimas da agressão desse regime. Mas o apartheid mereceu da vossa parte uma atitude mais branda: o chamado "envolvimento positivo". O ANC esteve também na lista negra como uma "organização terrorista!". Estranho critério que levaria a que, anos mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamadas de "freedom fighters" por estrategas norte-americanos.
Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho. Como Martin Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de todos os americanos. Pois sonhei que eu era não um homem mas um país. Sim, um país que não conseguía dormir. Porque vivia sobressaltado por terríveis factos. E esse temor fez com que proclamasse uma exigência. Uma exigência que tinha a ver consigo, Caro Presidente. E eu exigia que os Estados Unidos da América procedessem à eliminação do seu armamento de destruição massiva. Por razão desses terríveis perigos eu exigia mais: que inspectores das Nações Unidas fossem enviados para o vosso país. Que terríveis perigos me alertavam? Que receios o vosso país me inspirava? Não eram produtos de sonho, infelizmente. Eram factos que alimentavam a minha desconfiança. A lista é tão grande que escolherei apenas alguns:
- Os Estados Unidos foram a única nação do mundo que lançou bombas atómicas sobre outras nações
- O seu país foi a única nação a ser condenada por "uso ilegítimo da força" pelo Tribunal Internacional de Justiça
- Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas islâmicos mais extremistas (incluindo o terrorista Bin Laden) a pretexto de derrubarem os invasores russos no Afeganistão.
- O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto praticava as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo o gaseamento dos curdos em 1988)
- Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano Patrice Lumumba foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de preso e torturado e baleado na cabeça o seu corpo foi dissolvido em ácido clorídrico.
- Como tantos outros fantoches, Mobutu Sese Seko foi por vossos agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais à espionagem americana: o quartel-general da CIA no Zaire tornou-se o maior em África. A ditadura brutal deste zairense não mereceu nenhum reparo dos EUA até que ele deixou de ser conveniente, em 1992
- A invasão de Timor Leste pelos militares indonésios mereceu o apoio dos EUA. Quando as atrocidades foram conhecidas, a resposta da Administração Clinton foi "o assunto é da responsabilidade do governo indonésio e não queremos retirar-lhe essa responsabilidade".
- O vosso país albergou criminosos como Emmanuel Constant um dos líderes mais sanguinários do Taiti cujas forças paramilitares massacraram milhares de inocentes. Constant foi julgado à revelia e as novas autoridades solicitaram a sua extradição. O governo americano recusou o pedido.
- Em Agosto de 1998, a força aérea dos EUA bombardeou no Sudão uma fábrica de medicamentos, designada Al-Shifa. Um engano? Não, tratava-se de uma retaliação dos atentados bombistas de Nairobi e Dar-es-Saalam.
- Em Dezembro de 1987, os Estados Unidos foi o único país (junto com Israel) a votar contra uma moção de condenação ao terrorismo internacional. Mesmo assim a moção foi aprovada pelo voto de cento e cinquenta e três países.
- Em 1953, a CIA ajudou a preparar o golpe de Estado contra o Irão na sequência do qual milhares de comunistas do Tudeh foram massacrados. A lista de golpes preparados pela CIA é bem longa.
- Desde a Segunda Guerra Mundial os EUA bombardearam: a China (1945-46), a Coreia e a China (1950-53), a Guatemala (1954), a Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), a Guatemala (1960), o Congo (1964), o Peru (1965), o Laos (1961-1973), o Vietname (1961-1973), o Camboja (1969-1970), a Guatemala (1967-1973), Granada (1983), Líbano (1983-1984), a Líbia (1986), Salvador (1980), a Nicarágua (1980), o Irão (1987), o Panamá (1989), o Iraque (1990-2001), o Kuwait (1991), a Somália (1993), a Bósnia (1994-95), o Sudão (1998), o Afeganistão (1998), a Jugoslávia (1999)
- Acções de terrorismo biológico e químico foram postas em prática pelos EUA: o agente laranja e os desfolhantes no Vietname, o vírus da peste contra Cuba que durante anos devastou a produção suína naquele país.
- O Wall Street Journal publicou um relatório que anunciava que 500 000 crianças vietnamitas nasceram deformadas em consequência da guerra química das forças norte-americanas
Acordei do pesadelo do sono para o pesadelo da realidade. A guerra que o Senhor Presidente teimou em iniciar poderá libertar-nos de um ditador. Mas ficaremos todos mais pobres. Enfrentaremos maiores dificuldades nas nossas já precárias economias e teremos menos esperança num futuro governado pela razão e pela moral. Teremos menos fé na força reguladora das Nações Unidas e das convenções do direito internacional. Estaremos, enfim, mais sós e mais desamparados.
Senhor Presidente:
O Iraque não é Saddam. São 22 milhões de mães e filhos, e de homens que trabalham e sonham como fazem os comuns norte-americanos. Preocupamo-nos com os males do regime de Saddam Hussein que são reais. Mas esquece-se os horrores da primeira guerra do Golfo em que perderam a vida mais de 150 000 homens.
O que está destruindo massivamente os iraquianos não são armas de Saddam. São as sanções que conduziram a uma situação humanitária tão grave que dois coordenadores para ajuda das Nações Unidas (Dennis Halliday e Hans von Sponeck) pediram a demissão em protesto contra essas mesmas sanções. Explicando a razão da sua renúncia, Halliday escreveu: "Estamos destruindo toda uma sociedade. É tão simples e terrível como isso. E isso é ilegal e imoral". Esse sistema de sanções já levou à morte meio milhão de crianças iraquianas.
Mas a guerra contra o Iraque não está para começar. Já começou há muito tempo. Nas zonas de restrição área a Norte e Sul do Iraque acontecem continuamente bombardeamentos desde há 12 anos. Acredita-se que 500 iraquianos foram mortos desde 1999. O bombardeamento incluiu o uso massivo de urânio empobrecido (300 toneladas, ou seja 30 vezes mais do que o usado no Kosovo)
Livrar-nos-emos de Saddam. Mas continuaremos prisioneiros da lógica da guerra e da arrogância. Não quero que os meus filhos (nem os seus) vivam dominados pelo fantasma do medo. E que pensem que, para viverem tranquilos, precisam de construir uma fortaleza. E que só estarão seguros quando se tiver que gastar fortunas em armas. Como o seu país que despende 270 000 000 000 000 dólares (duzentos e setenta biliões de dólares) por ano para manter o arsenal de guerra. O senhor bem sabe o que essa soma poderia ajudar a mudar o destino miserável de milhões de seres.
O bispo americano Monsenhor Robert Bowan escreveu-lhe no final do ano passado uma carta intitulada "Porque é que o mundo odeia os EUA ?" O bispo da Igreja católica da Florida é um ex-combatente na guerra do Vietname. Ele sabe o que é a guerra e escreveu: "O senhor reclama que os EUA são alvo do terrorismo porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que absurdo, Sr. Presidente! Somos alvos dos terroristas porque, na maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvos dos terroristas porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo fez coisas odiosas. Em quantos países agentes do nosso governo depuseram lideres popularmente eleitos substituindo-os por ditadores militares, fantoches desejosos de vender o seu próprio povo às corporações norte-americanas multinacionais? E o bispo conclui: O povo do Canadá desfruta de democracia, de liberdade e de direitos humanos, assim como o povo da Noruega e da Suécia. Alguma vez o senhor ouviu falar de ataques a embaixadas canadianas, norueguesas ou suecas? Nós somos odiados não porque praticamos a democracia, a liberdade ou os direitos humanos. Somos odiados porque o nosso governo nega essas coisas aos povos dos países do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados pelas nossas multinacionais."
Senhor Presidente:
Sua Excelência parece não necessitar que uma instituição internacional legitime o seu direito de intervenção militar. Ao menos que possamos nós encontrar moral e verdade na sua argumentação. Eu e mais milhões de cidadãos não ficamos convencidos quando o vimos justificar a guerra. Nós preferíamos vê-lo assinar a Convenção de Kyoto para conter o efeito de estufa. Preferíamos tê-lo visto em Durban na Conferência Internacional contra o Racismo.
Não se preocupe, senhor Presidente. A nós, nações pequenas deste mundo, não nos passa pela cabeça exigir a vossa demissão por causa desse apoio que as vossas sucessivas administrações concederam apoio a não menos sucessivos ditadores. A maior ameaça que pesa sobre a América não são armamentos de outros. É o universo de mentira que se criou em redor dos vossos cidadãos. O maior perigo não é o regime de Saddam., nem nenhum outro regime. Mas o sentimento de superioridade que parece animar o seu governo. O seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA. Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos.
Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem argumentação para consumo de diminuídos mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar.

Manhã Submersa (a dor)


"o peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais."


Manhã Submersa - Vergílio Ferreira

domingo, 6 de julho de 2008

Quando Nietzsche Chorou (caos e frenesi)


"É preciso ter caos e frenesi dentro de si para dar à luz uma estrela dançarina (...)"


Quando Nietzsche Chorou
- Irvin D. Yalom; pág. 183

sábado, 5 de julho de 2008


"Ele tinha até de sentir mais: a sua existência inteira, com toda a sua beleza e moderação, assentava num subsolo oculto de sofrimento e conhecimento, que por sua vez lhe foi revelado através daquele elemento dionisíaco. E vede! Apolo não podia viver sem Dioniso, aquele elemento «titânico» e o elemento «bárbaro» constituía afinal a mesma necessidade que era própria ao elemento apolineo! Pensemos então como neste mundo, construído sobre a aparência e a moderação e com represas artificiais, penetrava então o som extasico da festa dionisíaca, em melodias magicas de crescente sedução, assim como nestas suava todo o excesso da natureza em prazer, sofrimento e conhecimento, ate ao grito penetrante: pensemos o que podia significar, face a esse demoníaco canto popular, o artista de Apolo com os seus salmos, com o som fantasmagórico da harpa! As musas das artes da aparência empalideciam diante de uma arte que falava a verdade na sua embriaguez, a sabedoria de Sileno exclamava «Ó dor! Ó dor!» contra os serenos seres Olímpicos. O individuo, com todos os seus limites e medidas, ficava aqui submerso no esquecimento de si próprio, inerente aos estádios dionisíacos, e esquecia as normas apolineas. O excesso desvendava-se como sendo verdade, a contradição, o deleite nascido das dores falava de si a partir do coração da natureza.”

Friedrich Nietzsche
O Nascimento da Tragédia e Acerca da Verdade e da Mentira
Página 41

Quando Nietzsche Chorou


"(...) tenho perguntado a mim próprio porque reina o medo da noite. Após vinte anos dessas reflexões, acredito agora que os medos não brotam das trevas; pelo contrário, são como as estrelas: estão sempre ali, mas ofuscadas pelo clarão da luz do dia."


Quando Nietzsche Chorou - Irvin D. Yalom; pág. 183.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A Insustentável Leveza do Ser (o maior fracasso do homem)


"Nada mais tocante do que vacas a brincar. Tereza olha para elas com ternura e pensa (é uma ideia que a assalta irresistivelmente de há dois anos para cá) que a humanidade é um parasita da vaca, tal como a ténia é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma sanguessuga. O homem é um parasita da vaca - seria certamente a definição que a zoologia de um não-homem daria ao homem.
Pode não ver-se nesta definição mais do que uma simples brincadeira, merecedora apenas de um sorriso de indulgência. Mas se Tereza a levar a sério, arrisca-se a encetar uma queda vertiginosa: é um pensamento perigoso que pode afastá-la da humanidade. Já no Génesis, Deus encarregou os homens de reinar sobres os animais, mas isso pode explicar-se dizendo que esse poder apenas foi emprestado. O homem não era o proprietário, mas um simples gerente do planeta; mais dia menos dia, teria de prestar contas pela sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem «dono e senhor da natureza». O que não deixa de ser uma coincidência interessante é o facto de ser precisamente esse mesmo Descartes que nega categoricamente que os animais tenham alma. O homem é proprietário, e dono, enquanto, segundo Descartes, o animal não passa de um autómato, de uma «machina animata», ou seja, de uma máquina animada. Quando o animal geme, não quer dizer que se queixe: só quer dizer que tem uma peça a ranger. Quando a roda de um carro de cavalos chia, isso não quer dizer que a charrete tenha uma dor: é só falta de óleo. As queixas dos animais devem ser interpretadas da mesma maneira, e é perfeitamente estúpido lamentar a sorte de um cão dissecado em vida num laboratório.
(...)
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
(...)
Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenine e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece-me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a vergastar um cavalo. Chega-se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça-se à sua cabeça e desata a chorar.
A cena passava-se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado.
Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo. E é desse Nietzche que eu gosto (...)"


A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 327,328,329,330.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

"A brisa, ao tocar os meus olhos, transforma-se em lágrimas que descem frias pelo meu rosto. Os meus lábios. Sinto-as e sinto a memórias das vezes que chorei o desespero parado, mais triste, de lágrimas que descem frias pelo meu rosto. O tempo passa por mim como qualquer coisa que passa por mim sem que a consiga imaginar e as lágrimas, que eram apenas a brisa a tocar os meus olhos, começam a ser lágrimas de desespero verdadeiro. Paro no passeio. O mundo pára. E lembro-me de ti como uma faca, uma faca profunda, a lâmina infinita de uma faca espetada infinitamente em mim. Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam na noite. Noutras noites, olhámos para a lua. Neste noite, não olhámos para a lua. Noutras noites, olhámos para a lua e enchemo-nos de desejos. Nesta noite, não olhámos para a a lua e sofremos. Noutras noites, olhámos para a lua e não sabíamos o que era sofrer, escuridão e esperança. Na lua, víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos enganados. Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu rosto, sei que nos enganámos e sei a lâmina infinita de uma faca."

José Luís Peixoto
In “Antídoto”

A Insustentável Leveza do Ser (hierarquia)


"Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito «Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas», para que toda a evidência do Génesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela que costumava comer e apresentasse (tarde demais) as suas desculpas à vaca."


A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 326

terça-feira, 1 de julho de 2008

A Insustentável Leveza do Ser


"Parece-lhe é que o casal humano foi criado de tal forma que o amor do homem e da mulher é a priori de uma natureza inferior àquela que pode ter (pelo menos na melhor das suas variantes) o amor entre o homem e o cão, essa estranha coisa da história do homem que o Criador certamente não previu.
É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que torturam os homens e as mulheres: Gostará ele de mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amar-me-á mais do que eu o amo? Todas essas interrogações que questionam o amor, que o medem, o perscrutam, o inspeccionam, não se arriscarão a matá-lo na casca? Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos ser amados, ou seja, por queremos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações e não querermos senão a sua simples presença.
E ainda há mais uma coisa: Tereza aceitou Karenine tal e qual como ele é, não tentou modificá-lo, deu a sua anuência prévia ao seu universo de cão, não quer confiscar-lho, não tem ciumes das suas tendências secretas. Se o educou, não foi com a intenção de modificá-lo (como um homem quer sempre modificar a sua mulher e uma mulher o seu homem), mas simplesmente para lhe ensinar a língua elementar que havia de permitir-lhes compreenderem-se e viverem os dois juntos.
E também: o seu amor pelo cão é um amor voluntário, ninguém a obrigou a isso.
Mas sobretudo: nenhum ser humano pode presentear outro com um idílio. Só o animal pode fazê-lo porque não foi expulso do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. É um amor sem conflitos, sem cenas dilacerantes, sem evolução."


A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 337, 338