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quinta-feira, 3 de julho de 2008

A Insustentável Leveza do Ser (o maior fracasso do homem)


"Nada mais tocante do que vacas a brincar. Tereza olha para elas com ternura e pensa (é uma ideia que a assalta irresistivelmente de há dois anos para cá) que a humanidade é um parasita da vaca, tal como a ténia é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma sanguessuga. O homem é um parasita da vaca - seria certamente a definição que a zoologia de um não-homem daria ao homem.
Pode não ver-se nesta definição mais do que uma simples brincadeira, merecedora apenas de um sorriso de indulgência. Mas se Tereza a levar a sério, arrisca-se a encetar uma queda vertiginosa: é um pensamento perigoso que pode afastá-la da humanidade. Já no Génesis, Deus encarregou os homens de reinar sobres os animais, mas isso pode explicar-se dizendo que esse poder apenas foi emprestado. O homem não era o proprietário, mas um simples gerente do planeta; mais dia menos dia, teria de prestar contas pela sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem «dono e senhor da natureza». O que não deixa de ser uma coincidência interessante é o facto de ser precisamente esse mesmo Descartes que nega categoricamente que os animais tenham alma. O homem é proprietário, e dono, enquanto, segundo Descartes, o animal não passa de um autómato, de uma «machina animata», ou seja, de uma máquina animada. Quando o animal geme, não quer dizer que se queixe: só quer dizer que tem uma peça a ranger. Quando a roda de um carro de cavalos chia, isso não quer dizer que a charrete tenha uma dor: é só falta de óleo. As queixas dos animais devem ser interpretadas da mesma maneira, e é perfeitamente estúpido lamentar a sorte de um cão dissecado em vida num laboratório.
(...)
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
(...)
Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenine e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece-me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a vergastar um cavalo. Chega-se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça-se à sua cabeça e desata a chorar.
A cena passava-se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado.
Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo. E é desse Nietzche que eu gosto (...)"


A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 327,328,329,330.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A Insustentável Leveza do Ser (hierarquia)


"Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito «Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas», para que toda a evidência do Génesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela que costumava comer e apresentasse (tarde demais) as suas desculpas à vaca."


A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 326

terça-feira, 1 de julho de 2008

A Insustentável Leveza do Ser


"Parece-lhe é que o casal humano foi criado de tal forma que o amor do homem e da mulher é a priori de uma natureza inferior àquela que pode ter (pelo menos na melhor das suas variantes) o amor entre o homem e o cão, essa estranha coisa da história do homem que o Criador certamente não previu.
É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que torturam os homens e as mulheres: Gostará ele de mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amar-me-á mais do que eu o amo? Todas essas interrogações que questionam o amor, que o medem, o perscrutam, o inspeccionam, não se arriscarão a matá-lo na casca? Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos ser amados, ou seja, por queremos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações e não querermos senão a sua simples presença.
E ainda há mais uma coisa: Tereza aceitou Karenine tal e qual como ele é, não tentou modificá-lo, deu a sua anuência prévia ao seu universo de cão, não quer confiscar-lho, não tem ciumes das suas tendências secretas. Se o educou, não foi com a intenção de modificá-lo (como um homem quer sempre modificar a sua mulher e uma mulher o seu homem), mas simplesmente para lhe ensinar a língua elementar que havia de permitir-lhes compreenderem-se e viverem os dois juntos.
E também: o seu amor pelo cão é um amor voluntário, ninguém a obrigou a isso.
Mas sobretudo: nenhum ser humano pode presentear outro com um idílio. Só o animal pode fazê-lo porque não foi expulso do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. É um amor sem conflitos, sem cenas dilacerantes, sem evolução."


A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 337, 338