
"Nada mais tocante do que vacas a brincar. Tereza olha para elas com ternura e pensa (é uma ideia que a assalta irresistivelmente de há dois anos para cá) que a humanidade é um parasita da vaca, tal como a ténia é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma sanguessuga. O homem é um parasita da vaca - seria certamente a definição que a zoologia de um não-homem daria ao homem.
Pode não ver-se nesta definição mais do que uma simples brincadeira, merecedora apenas de um sorriso de indulgência. Mas se Tereza a levar a sério, arrisca-se a encetar uma queda vertiginosa: é um pensamento perigoso que pode afastá-la da humanidade. Já no Génesis, Deus encarregou os homens de reinar sobres os animais, mas isso pode explicar-se dizendo que esse poder apenas foi emprestado. O homem não era o proprietário, mas um simples gerente do planeta; mais dia menos dia, teria de prestar contas pela sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem «dono e senhor da natureza». O que não deixa de ser uma coincidência interessante é o facto de ser precisamente esse mesmo Descartes que nega categoricamente que os animais tenham alma. O homem é proprietário, e dono, enquanto, segundo Descartes, o animal não passa de um autómato, de uma «machina animata», ou seja, de uma máquina animada. Quando o animal geme, não quer dizer que se queixe: só quer dizer que tem uma peça a ranger. Quando a roda de um carro de cavalos chia, isso não quer dizer que a charrete tenha uma dor: é só falta de óleo. As queixas dos animais devem ser interpretadas da mesma maneira, e é perfeitamente estúpido lamentar a sorte de um cão dissecado em vida num laboratório.
(...)
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
(...)
Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenine e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece-me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a vergastar um cavalo. Chega-se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça-se à sua cabeça e desata a chorar.
A cena passava-se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado.
Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo. E é desse Nietzche que eu gosto (...)"
A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 327,328,329,330.
(...)
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
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Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenine e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece-me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a vergastar um cavalo. Chega-se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça-se à sua cabeça e desata a chorar.
A cena passava-se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado.
Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo. E é desse Nietzche que eu gosto (...)"
A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera, pág. 327,328,329,330.