Destina-se esta secção à crítica dos maus livros e especialmente à crítica daqueles maus livros que toda a gente considera bons. O livro, consagrado por qualidades que não tem, do homem consagrado por qualidades com que os outros o pintaram; o livro daquele que, tendo criado fama, se deitou a fingir que dormia; o livro do que entrou no palácio das musas pela janela ou colheu a maçã da sabedoria com o auxílio dum escadote – tudo isto se pesará na Balança de Minerva.
Claro que a razão do título Balança de Minerva é a circunstância de Minerva não ter balança nenhuma. Vagamente absurdo, leva este título em si a definição dum modo-de-ver que escolhe o onde opor-se a todos para ter razão inutilmente. A consciência do esforço inútil do trabalho perdido ainda é uma das grandes emoções estéticas que restam a quem se preocupa com as coisas que ainda restam.
A crítica, de resto, é apenas a forma suprema e artística da maledicência. É preferível que seja justa, mas não é absolutamente necessário que o seja. A injustiça, aliás, é a justiça dos fortes. No fundo, isto é tudo bondade. Dizer mal dum livro é o único modo de dizer bem dele. Se é mau, faz-lhe justiça; se é bom põe-o na evidência que os livros bons merecem. E, no fim de tudo, nada disto tem importância, porque os livros bons leva-os a História ao colo para casa. E quanto aos maus, criticar é apenas abrir-lhes a cova e rezar-lhes em cima da última descida o latim que falava Juvenal. Às vezes é com sete pás de elogios que esta justiça mortal melhor se sela.
A justificação última da crítica assim bem entendida é o satisfazer a função natural de desdenhar, função tão natural como a de comer e que é de boa higiene do espírito fazer cuidadosamente. Quem sente vontade de desdenhar não deve atar-se à cobardia de julgar isso feio, nem vender-se à infâmia de ir desdenhar o que os outros desenham, abdicando assim da sua individualidade, gregário.
As horas passam devagar e pesa em tédio a consciência delas. Buscar o conforto no desprezo é não só o nosso dever para com o desprezo, mas também o nosso dever para com nós próprios. Espetar alfinetes na alma alheia, dispondo esses alfinetes em desenhos que aprazam à nossa atenção futilmente concentrada, para que o nosso tédio se vá esvaindo – eis um passatempo deliciosamente de crítico, e ao qual juramos fidelidade.
Traduzindo isto para a metáfora que dá cor a esta secção, pretendemos dar a entender que o nosso uso da Balança de Minerva limitar-se-á, na maioria dos casos, a dar com ela – pesos e tudo – na cabeça do criticado. Isso, de resto, não deve preocupar a ninguém. Quem tiver de ser imortal pode sê-lo mesmo com a cabeça partida. O ser imortal é a única das preocupações anti-sociais que não faz mal a ninguém. E visto que o futuro raras vezes dá por ela, não é de mais que o presente algumas vezes nela dê.
Fernando Pessoa, Prosa Publicada em Vida, “Sobre Arte e Literatura”.
2 comentários:
Eu já conhecia esse trecho dele, mas, quando leio o Fernando fico preso na sua gravidade.
Pessoa é o planeta com as maiores dúvidas e amplidões que li.
Excelente!
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