domingo, 28 de setembro de 2008

'Pierre Menard, autor do Quixote'


"«Pensar, analisar, inventar (escreveu-me também) não são actos anómalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamentos, recordar com ingénua estupefacção o que o "doutor universalis" pensou, é confessar a nossa fraqueza de espírito ou a nossa barbárie. Todo o homem tem de ser capaz de todas as ideias e entendo que no porvir o será.»"

Jorge Luis Borges, Ficções.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Carlos de Oliveira.



DUNAS

Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:

“O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem.”

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Constantino Cavafy



"Cavafy fala muito em amor, em paixão - mas o amor e a paixão de que ele fala são sempre e só a obsessão do desejo quando em alguém momentâneamente se fixou. E é curiosíssimo que a sua análise nunca entra no espírito dos outros, senão na medida em que isso se reflecte nas suas atitudes ou nos seus gestos - são sempre, e quase sempre só, corpos, com que, por sua vez, o poeta não compromete mais que o desejo ou a imaginação de possuí-los ou de recordá-los. É
uma visão inteiramente hedonística que, no entanto, aceita sem ilusões os limites trágicos dessa mesma atitude: uma solidão desacompanhada. Por isso, a recordação das aventuras, passados ou perdidos os atractivos físicos, é a única maneira de revivê-las.
Poucos, se é que algum, poetas ou escritores modernos foram tão longe como Cavafy na franqueza a este respeito. Não queremos referir-nos ao modo franco e até certo ponto desafiador com que ele impôs a sua própria maneira de desejar; ou mesmo de possuir. Mas sim à coragem de considerar o prazer físico como um valor em si e por si, independentemente de ligações realmente afectivas, ou de transfigurações passionais. De certo modo, e ao contrário do que superficialmente se supõe, é este carácter eventual do amor que mais choca a mentalidade comum. A verdade é que, ainda que a hipocrisia sempre tenha sido grande a esse respeito, as «aventuras», o «pecado», etc. sempre fizeram parte do equilíbrio social (se é que tal coisa alguma vez existiu).
(...)
O que que significa exactamente o imoralismo de Cavafy? É ele um perverso? É ele um poeta que dissolve as responsabilidades últimas da consciência moral? Antes de mais, há que afirmar que, em sentido estrito, nenhuma obra de arte tem ou deve ter quaisquer preocupações dessa ordem, e que ninguém é melhor poeta pelo grau de virtude que se evola da sua poesia. Pelo contrário, a literatura virtuosa sempre foi reconhecidamente medíocre, com raríssimas excepções, para quem está primacialmente interessado em literatura. Não é que a virtude seja um inconveniente para a poesia, e que esta necessariamente deva ser uma «flor do mal». Mas é que a poesia, como consciência profunda do mundo e da vida, tem de brotar de algo mais profundo que as relatividades sociais do que sejam o Bem e o Mal, mesmo quando alguém acredite piamente que o Bem e o Mal foram definidos ad aeternam por quaisquer dogmas ou cânones (cuja historicidade deveria fazer reflectir esses pios). Toda e qualquer poesia que seja franca e honesta nas suas revelações, ou que fundamente analise as circunstâncias em que uma qualquer experiência decorre - é, por isso mesmo, moral. E é-o tanto mais quanto o poeta se tenha libertado de uma consciência de culpa, que precisamente pela conotação «pecaminosa», tornaria perversa a sua poesia. A exibição do pecado como pecado é mais imoral do que a narrativa de tudo como destino reconhecido, assumido e aceite. Porque o que atrai e dissolve é o fascínio do pecado, não a naturalidade que ele venha a ter como parte da variedade imensa da vida, em que já ninguém acredita em que, por exemplo, os tremores de terra resultem da prática da homossexualidade. De resto, depois de tão terríveis destruições de povos inocentes e de cidades indefesas, como as que se fizeram e fazem no nosso tempo, as iras de Jeová contra Sodoma e Gomorra são por certo raivas de um deus provinciano."

Prefácio de Jorge de Sena


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E agora... um poema do tal Cavafy.


A INTERVENÇÃO DOS DEUSES

Faremos primeiro isto, aquilo faremos depois;
mais tarde, - ao que calculo - em um ano ou dois,
as acções serão estas ou aquelas, os costumes assim ou assado.
Mas com soluções provisórias ninguém ficará contentado.
Havemos de procurar de todas a melhor.
E quanto mais procurar-mos, pior,
até darmos connosco em plena confusão.
E perplexos havemos de parar então.
Será dos deuses tempo de intervir.
Os deuses descerão, os deuses hão-de vir
para salvar alguns, outros arrebatar
à força, pela cinta. E quando alguma ordem voltar,
retirar-se-ão. E logo alguma coisa alguém fará,
e outro a seguir também. E toda a gente dará
o seu contributo ao progresso da vida.
E estaremos outra vez no beco sem saída.

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PS: quero agradecer ao Maluco que me emprestou este livro magnífico :)